5 de dez. de 2010

uma mulher morre apedrejada
porque deus criou desejos
para serem soterrados
sob constituições humanitárias

uma mulher morre apedrejada
porque mulheres não falam
porque mulheres não sentem
porque mulheres não gozam

uma mulher morre apedrejada
porque desafia prescrições bélicas
de senhores patriarcais
- e ama

uma mulher morre apedrejada
para lembrar que mulheres serão apedrejadas
todas as vezes
em que decidirem
abandonar seus escombros

uma mulher morre apedrejada
e constrói ruínas
dentro de mim





8 de nov. de 2010

as missas dominicais
ainda ensinam,
extensas,
sobre a pureza do vinho
e o milagre
do nascimento.

e eu recordo que aspirei, a vida inteira,
pelos ensinamentos do pai
na hora marcada da ceia

e sobre como procurei acreditar
na história da ressurreição,
do caminho, do pão
e da vida

e não tive, depois disso, muito mais
que um ou dois questionamentos
filosóficos

e não fiz mais que hesitar
quando finalmente ouvi profundidades
sobre a condição humana.

mas eu quis compartilhar destinos
quando tomei escolhas sobre bancos sujos
de rodoviárias

e procurei rememorar mandamentos
na hora da dor não prevista naqueles livros mofados
e suas metáforas de medo.

foram poucas as palavras eruditas que esqueci
para desaprender
minha própria humanidade.


eu precisei rasgar a pele
para conhecer meu alimento.

29 de out. de 2010

tenho segurado estes dias
como contenho expectativas,
uma a uma,
a observar teus passos
e gravar teu sorriso
mais apressado:
- também vou bem,
 vou bem, e então
(sente aqui ao meu lado
que eu quero cantar o refrão
que me lembra você).

e tenho fingido, obtusa,
que não decorei essas voltas,
as passadas inteiras,
a poesia guardada
em olhos que eu descreveria
anatomicamente,
disfarçando, em voz alta,
o lirismo piedoso
da memória.

tenho aniquilado desejos:

não quero pensar
se você soubesse
o que guardo sob frases de encontro
se você pensasse
sorrindo, em premissas não correspondidas
se você notasse,
com esses olhos que descrevo,

que meu silêncio quer
te escrever inteiro.

10 de out. de 2010

se sou tão eu enquanto me vejo agora de olhar perdido, remexendo os cabelos para acordar tua imagem forte (como também eram fortes teus braços em minha volta e como era macio ainda tocá-los feito boba, tão perdida em tuas dobras) e exausta em teu corpo tão teu, que inominado e solto como tu tes fostes e de suor amargo como me amargou tua ida. e sou tão eu que me percebo sacudindo cabelos para abafar tua memória - porque é de mim guardar os teus detalhes, teus traços firmes, o cheiro do meu quarto quando meu quarto era teu e eu ainda era a cama, o ruído, a espera. e sou tão eu que ainda espero mexendo em cabelos e restos enquanto, depois de ti, só me sobrou (mãos, dedos, cabelos, ânsia, quarto) tua falta.

29 de ago. de 2010

e permaneço - quantas horas - sentada em frente a uma parede branca: um desejo desobediente de teus últimos dias, um desespero atrapalhado porque nada acontece lá fora, nada acontece contigo e eu continuo aqui sentada, sentada há horas em frente a uma parede branca, a uma tela branca, esperando que surjas, que aconteças entre minha incontinência de antes e uma vontade louca de escrever: - me escreva.
te buscava incessante enquanto recitava mentalmente sobre o quanto te procuro e nada encontro - e quando não surges, nessas horas, desvendo poesias: em cada uma te inauguro.


para lembrar de ana c.

17 de mai. de 2010

para ler ao som de chico buarque: trocando em miúdos
02h23


traguei um vinho seco
com fervor similar ao que quebrava taças
e pensava em braços
sobre os quais apoiei,
inútil, a cabeça
e as manhãs dolorosas
de tuas partidas.

me alimentava um vazio
amargo
que apenas cabe
aos de desejos
incontidos
e de ilusões
grosseiras.

não tive vontade
que ultrapassasse
teu corpo.

guardei inteiras
as deformidades
do pescoço,
dos vidros partidos,
das paredes dessa casa:

tem a forma
da tua ausência
a espoliação da memória.

11 de fev. de 2010

I. quarta xícara de café após a última notícia. não sei o número do dia. algumas conversas intercalam as lamentações ruidosas. quinta xícara desesperada. sou incapaz de naturalizar as perdas. descubro os olhos infantis e alcanço apenas um retrato sobre a caixa, um corpo gélido, um rosto inchado.

II. e o que eu tenho é medo, incontinência, despreparo. sequer um deus para enganar a morte. das vidas grosseiramente talhadas, guardo só incompreensão.


III. dor do verbo interromper.

4 de fev. de 2010

era silêncio quando a chuva quente gretou o vazio, a imensidão do tempo e logo tornou viva minha pele arrepiada. tinha cheiro de terra aquela sensação úmida e minha respiração tranquila de para quem há pouco tão pouco valia suspirar. e era brando o gosto da água em minha língua morna e seu percurso entre meus dentes, a sugestão de meu rosto, o gozo da alma tocada. era doce.

(a chuva, terna, sempre me comove por inteira: o alívio não suporta timidez.)